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O ano era 2016, eu vivia no Rio de Janeiro e a cultura indígena começava a chegar cada vez mais perto de mim, de nós, que tínhamos sensibilidade para nos deixar afetar, olhos de ver e ouvidos de ouvir.
No jardim do Parque Lage uma Oca havia sido construída. Um espaço que dialogava entre arte contemporânea e ancestralidade abria caminhos para outras costuras, outros encantamentos. Os Huni Kuin nos convidavam para um encontro de música, pinturas corporais e cura. Provocavam todos os espectadores a se deixarem afetar por uma dança coletiva, ao som de um ritmo cadenciado, um atrás do outro, celebrando a força de transformação da serpente. Os corpos dos espectadores, estranhos entre si, formavam um único novo ser, uma única energia, num encontro de encantamentos e meditação.
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Na Casa da Águia, no meio da floresta da Tijuca, os Fulniô nos recebiam para um ritual de cura, onde evocavam a força da onça branca, com pinturas em seus corpos, cocares e maracás. Do lado de fora, a chuva de julho caía fria, mas ainda assim, o cacique nos conduziu para uma dança coletiva, onde entrávamos num grande círculo em movimento, como se nossos corpos pudessem provocar um redemoinho, um vórtice de energia, em meio aos fluidos do ar, da água e de nossos corpos energéticos. A pintura dos corpos indígenas se confundia em nossa pele, à medida que a chuva caía sobre nós e derretia as cores da onça branca, ao dançarmos brancos e fulniôs lado a lado.
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Já em São Sebastião, o pajé da aldeia Guarani Rio Silveira nos convidou para participar dos encantamentos na casa da reza. Nos preparou com rapé para podermos fazer nossa limpeza e nos convidou a fazer nossas ofertas com tabaco aos seres ancestrais que nos acompanhavam. Ao longo da cerimônia, entre cantos, maracás, luzes trêmulas das velas, Tupã, o deus dos raios e trovões apareceu com sua tempestade transformadora do lado de fora da casa e transformou aquele encontro, no meio da floresta, em um dia completamente fora do tempo.
As três experiências, entre tantas outras possíveis, me falam sobre a nossa capacidade de afetamento. Sobre como, ao nos despirmos de nossos conceitos, nossa rigidez racional, somos capazes de nos deixar encantar. Estes três momentos já estão longe do meu tempo cronológico, mas o encantamento provocado pelo afeto gerado, faz com que a experiência se torne viva, resistente à passagem dos dias, como se ganhasse uma categoria de envelhecimento na memória muito diferente dos fatos ordinários. Essas memórias simplesmente não envelhecem, elas são tão fortes, e verdadeiras, que posso reviver a emoção sentida, mesmo agora, anos depois.
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Recentemente li um texto de Jeanne Favret-Saada, “Ser Afetado”, indicado pela Juliana do IDR. No texto, Jeanne reflete sobre os estudos de etnologia e a capacidade dos etnólogos em deixarem-se ser afetados pelo campo de estudo. Ela traz como exemplo a sua vivência em uma região do norte francês conhecida pelas práticas de feitiçaria. Para ela, não basta o etnólogo apenas observar as evidências, fatos, ou relatos de pessoas envolvidas, ou não. Isso não basta para conhecer do que se trata o objeto estudado. Relatos podem ser visões preconceituosas de pessoas avessas ou temerosas a uma prática religiosa ancestral. Para a pesquisadora, o etnólogo só poderá compreender do que se trata a feitiçaria (naquele contexto) quando se permitir ser afetado por ela. Participar e se envolver, assumir um lugar, uma posição, para estar tão dentro do objeto de estudo que passaria a ser ele próprio o objeto estudado. Não há diferença entre eu e eles, é necessário ser um só.
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Ser afetado por algo é permitir que este algo transforme um pouco da sua própria vida. É confiar que não importam seus muros construídos para fortalecer suas crenças pessoais na imagem que você construiu sobre si mesmo. É preciso nos deixar ser afetados, sem medo de abandonar quem éramos, ou, simplesmente, confiando que as transformações que virão permitirão que a essência do que somos ainda permanecerá. A cada imersão e uma nova cultura, me deixo ser afetada pelos encontros, pelas histórias de vida de cada território. A cada encontro, com afeto, talvez, consiga quebrar um pouquinho mais das muralhas da minha autoimagem.
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